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Defender a Democracia e o Estado de Direito pressupõe combate intransigente da desigualdade e da concentração de renda

Paulo Roberto Guedes | Consultor Associado da Sociedade Faria de Oliveira Advogados | 29 de Junho de 2023

Já há alguns anos eu venho defendendo que a sociedade “como um todo” precisa entender que suas ações impactam a vida de milhares de pessoas e que, o mínimo a se esperar de cada um deles, é a capacitação suficiente para que isso seja compreendido de forma correta, completa e abrangente.

Investidores, empreendedores e altos executivos empresariais, assim como dirigentes políticos, precisam compreender o quanto é grandioso trabalhar para a melhoria de vida de todos aqueles que ‘giram’ em torno de seus projetos, empresariais ou políticos. Conhecer os reais impactos gerados por suas ações, pois tudo aquilo que se faz, ao final de tudo, de um jeito ou de outro, irá gerar efeitos, para o bem ou para o mal, para a vida de todos, é essencial.

O avanço tecnológico é um exemplo: inerente às atividades produtivas ele gera impactos significativos na vida dos cidadãos, da sociedade, da economia e da política. Constata-se que ao mesmo tempo no qual se obtêm melhorias nos processos operacionais e de produção, há significativa diminuição no número de empregos de menor qualificação. Mas pior, posto que não se obtêm a devida correspondência quantitativa no aumento no número de empregos mais qualificados. O desemprego, além de se mostrar como consequência automática, tende a ser muito mais significativo junto às populações menos qualificadas, menos preparadas.

De fato, a compreensível busca por melhorias operacionais tem exigido aperfeiçoamento, aprendizado e capacitação constantes, mas que tem privilegiado as pessoas melhores formadas. Considerando um país como o Brasil, e com as exceções de sempre, pessoas que na sua maioria pertencem às classes mais ricas da população.

Esse processo, que parece inexorável e persistente, ocorre também nos países desenvolvidos, nos quais as tarefas mecânicas, rotineiras ou que, via avanço tecnológico, são substituídas pelas “máquinas”, vão aumentando a produtividade daqueles que ficam mas, infelizmente, expulsando do mercado de trabalho a mão-de-obra menos qualificada.

Pesquisas tem comprovado, em todo o mundo capitalista, que o aumento da produtividade obtido por novas tecnologias não resultam, como seria de se esperar, em ganhos reais para os trabalhadores, notadamente aqueles de menor qualificação.
O professor Paul Collier, da Universidade de Oxford, em seu livro “O futuro do capitalismo”, consegue mostrar que o processo de concentração de renda, generalisado em quase todo o mundo, não é inerente ao capitalismo, mas sim a uma “falha de funcionamento que pode e deve ser corrigida”. E, ao contrário de propostas nostálgicas e de retorno ao passado, defendidas por populistas nacionalistas que adotam políticas cada vez mais excludentes, ele sugere a restauração da política e da sociedade inclusiva como caminho para que se crie um mundo mais ético, no qual o Estado, a Família e a Empresa, desenvolvam papéis igualmente éticos.

Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, em seu livro “Capitalismo Stakeholder” (‘Uma economia global que trabalha para o progresso, as pessoas e o planete”), editado pela Alta/Cult Editôria, aqui no Brasil neste ano, foi enfático: “Há uma ferida ulcerante em nosso sistema econômico global, e essa ferida é a crescente desigualdade de renda”.”Em quase todos os países, a desigualdade nacional tem subido e, frequentemente, com rapidez”. E ao falar do impacto do desenvolvimento tecnológico atual, também não teve dúvidas: “essas tecnologias podem muito bem aumentar a desigualdade e os abismos sociais e políticos, o que pode levar nossa sociedade ao colapso”. Daí a “responsabilidade específica das empresas, que é garantir que todos os avanços tecnológicos sejam bem compreendidos, não apenas em termos de funcionalidade para usuários individuais, mas também no que significam para a sociedade como um todo”.

Aqui vale à pena repetir o que escreveu o economista francês Thomas Piketty, há quase dez anos atrás, em seu livro “O Capital no Século XXI”, ao demonstrar que “o crescimento econômico e a difusão do conhecimento ao longo do século XX impediram que se concretizasse o cenário apocalíptico preconizado por Karl Marx, mas, ao contrário do que o otimismo dominante após a Segunda Guerra Mundial costuma sugerir, a estrutura básica do capital e da desigualdade permaneceu relativamente inalterada”, traduzindo-se “numa concentração cada vez maior da riqueza, um círculo vicioso da desigualdade que, a um nível extremo, pode levar a um descontetamento geral e até ameçar os valores democráticos”.

Piketty, entre outras, fez duas outras observações também importantes: 1ª.: “a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergências vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam”, e 2ª.: “deve-se sempre desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos”.

É certo que além da evolução tecnológica e a forma como evolui o Capitalismo, aqui rapidamente comentados, não são os únicos responsáveis pelo aumento do desemprego e da desigualdade. Uma nova estrutura da força de trabalho (mais mulheres trabalhando, aumento do subemprego e do emprego informal etc.), o descaso com a educação e a destruição das principais políticas sociais, como foi o caso do Brasil nestes últimos quatro anos, a pandemia e a guerra na Ucrânia, também contribuíram para o agravamento desses problemas, aumentando ainda mais as incertezas e a insegurança com relação ao futuro.

O Relatório de Desigualdade Global (1) de 2021 indica que os 10% mais ricos da população global controlam 76% da riqueza mundial, enquanto os 50% mais pobres possuem apenas 2%. A chamada classe média (40% do total) fica com 22% da riqueza total. E quando se trata de receita, os 10% mais ricos se apropriam de 52% da receita global produzida, os 50% mais pobres ‘capturam’ apenas 8% e a classe intermediária – 40% - fica com 39%.

Já o último relatório publicado pela Oxfam International, agora em janeiro deste ano (“A “sobrevivência” do mais rico: por que é preciso tributar os superricos agora para combater as desigualdades”), aponta, entre outras informações, que desde 2020: a) “o 1% mais rico amealhou quase dois terços de toda a nova riqueza produzida no mundo – seis vezes mais do que os 7 bilhões de pessoas que compõem os 90% mais pobres da humanidade”; b) “as fortunas bilionárias estão aumentando em 2,7 bilhões de dólares por dia, mesmo com a inflação superando os salários de, pelo menos, 1,7 bilhão de trabalhadores – mais do que a população da Índia”; c) “as empresas de alimentos e energia mais do que dobraram seus lucros em 2022, pagando 257 bilhões de dólares a acionistas ricos, enquanto mais de 800 milhões de pessoas foram dormir com fome”; d) “apenas 4 centavos de cada dólar de receita tributária vêm de impostos sobre o patrimônio e a metade dos bilionários do mundo vive em países sem imposto sobre herança, aplicado ao dinheiro que dão aos filhos”.

No Brasil esse comportamento mundial não só é confirmado como piorado. Segundo o IPEA, no final de 2022, o índice Gini, que mede o grau de concentração de renda de um país (de zero a um, quanto mais próximo de um, maior é a desigualdade), chegou a 0,544. Número ainda alto e que faz com que o País se mantenha entre os dez países mais desiguais do mundo. No Japão, Canadá, Alemanha, Noruega, Dinamarca e Suécia, por exemplo, esse índice está entre 0,25 e 0,30. Segundo o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil ocupa o 2º lugar em concentração de renda entre mais de 180 países.

Informações geradas pelo 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, dão conta que 58,7% dos domicílios brasileiros, que representam 125,2 milhões de pessoas, não têm “acesso pleno e permanente de alimentos”, isto é, vivem com ‘insegurança alimentar’. Dentre esses, há 33,1 milhões que, literalmente, ‘passam fome’. Ou seja, em 2022, 15,5% de todos os brasileiros passaram fome, contra 9,0% no último trimestre de 2020. Ainda, segundo o documento, a incidência da segurança alimentar é extremamente mais alta “nas famílias lideradas por mulheres, por pessoas negras ou pardas e por indivíduos com baixa escolaridade”.

Parece claro, portanto, que a economia por si só, não consegue atender tudo o que a grande maioria das pessoas querem ou esperam obter, levando-as a acreditar que o problema está no sistema político vigente. O passo seguinte é acreditar em políticos com narrativas simples, com receitas ultrapassadas e de retorno a tempos que não voltam mais. Tempos propícios a “demagogos” e “salvadores da pátria”.

Uma das deduções, que aqui se coloca, é que além de todos os problemas existentes, agora e do futuro, os governos precisam desenvolver propostas que combatam o desemprego, a desigualdade e a miséria.

Mas isso, não tenho dúvidas, somente será possível com a participação contínua do conjunto da sociedade que precisa assumir suas reais responsabilidades e compreender, como aqui já foi escrito, que de um jeito ou de outro as ações de cada um afetam – para o bem ou para o mal – a vida de todos.

Vale lembrar que as críticas inconsequentes, incorretas e injustas que culpam a democracia, a liberdade e a defesa dos direitos humanos, pelas dificuldades do mundo atual, criam uma ambiente que “facilita a propaganda da extrema direita antidemocrática”. “O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta”, escreveu o jornalista e professor da ECA/USP Eugênio Bucci (2).

Portanto, são inegociáveis os valores democráticos assim como as políticas públicas que promovam o crescimento econômico, o emprego e a educação, e combatam a desigualdade e a miséria, sob pena de, caso isso não ocorra, tudo ser perdido. Não é uma discussão “sem fim”, mas a simples compreensão de que Democracia e Estado de Direito, imprescindíveis, somente serão mantidos quando alcançados em sua plenitude e valendo para todos. É fundamental combater os discursos e as narrativas “totalitárias”, principalmente aquelas oriundas do ‘mundo digital’, muito bem utilizado e explorado pela extrema direita antidemocrática.

O comentarista econômico do Financial Times, Martin Wolf, com relação à crise existente entre a democracia e a economia de mercado, existente neste século, em entrevista concedida dia 31.03.23, para a Nienke Beuwer no McKinsey Global Institute, não teve dúvidas ao defender que o crescimento econômico precisa ser “razoavelmente amplo em termos de impacto” e “gerar oportunidades para a maioria das pessoas. (Ele) precisa proteger as pessoas nas vicissitudes mais extremas da vida. Wolf acaba de lançar um novo livro: “A Crise do Capitalismo Democrático”.

Noah Smith, jornalista e doutor em Economia, escreveu em seu próprio blog, um artigo intitulado “The Darkness”, no qual ele explica porque “o iliberalismo (3) está em marcha em todo o mundo”. Utilizando-se de exemplos de todo o mundo, mais notadamente dos últimos vinte anos, e particularmente nos EUA, ele acredita que aquilo que a “América realmente precisa fazer é redescobrir a ideia de democracia como uma ideologia, não apenas como um sistema eleitoral”. Pois é, o problema é muito mais complexo e exige providências imediatas, caso queiramos, de fato e concretamente, que a Democracia prevaleça sobre a “Escuridão” (4).

John Dewey, filósofo e pedagogo norte-americano, um dos principais representantes da corrente chamada de pragmática, já no século passado dizia que “a séria ameaça à nossa democracia não é a existência de Estados totalitários estrangeiros. É a existência, dentro de nossas próprias atitudes pessoais e dentro de nossas próprias instituições, uma vez que “o campo de batalha está, portanto, aqui - dentro de nós mesmos e de nossas instituições e ela só pode ser conquistada estendendo a aplicação de métodos democráticos, métodos de consulta, persuasão, negociação, comunicação, inteligência cooperativa, na tarefa de fazer de nossa própria política, indústria, educação, nossa cultura em geral, um servo e uma manifestação evolutiva de ideias democráticas.

Pois é, queira-se ou não, as discussões sobre política, sociedade e economia chegaram à mesa de discussão de todos e ninguém poderá ficar de fora. Inclusive e principalmente os políticos, os empresários e altos executivos do setor privado, posto que isso é tarefa de toda a sociedade. Relatório da McKinsey, de 13.01.23, relativo às discussões em Davos já anunciava que “não há soluções para os maiores problemas do mundo que não envolvam os líderes das maiores empresas mundiais e formuladores de políticas nacionais e internacionais”.

Espera-se, consequentemente, que todos tenham se capacitado e obtido a devida compreensão para enfrentar o momento em que vivemos. Ainda há tempo de se evitar males maiores.

(1) O Relatório de Desigualdade Mundial é baseado em mais de quatro anos de trabalho de mais de 100 pesquisadores em todo o mundo. Os especialistas em desigualdade Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, ambos da University of California, Berkeley, e Thomas Piketty, da Paris School of Economics, coordenaram o relatório com Chancel.

(2) “O totalitarismo escópico”, artigo publicado pelo professor da ECA-USP e jornalista, Eugênio Bucci (Estadão de 06/04/23). “O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário”.

(3) “Democracia iliberal” é um sistema de governo que, mesmo com a existência de eleições, o cidadão comum não exerce qualquer controle ou poder sobre as classes dirigentes ou políticas. Pior, pois nessas sociedades os “donos do poder” violam e desrespeitam a Constituição vigente.

(4) Definições dadas por Noah Smith em seu livro: Escuridão como “falta de respeito pelo valor dos seres humanos individuais” e Democracia como a “elevação do respeito pela humanidade ao status de princípio organizador fundamental da sociedade.
E mais, ainda segundo Noah: “Há muita escuridão no mundo, mesmo nos melhores momentos. Guerras, limpeza étnica, violações de direitos, supressão da fala e da religião... essas coisas estão sempre, ou quase sempre, acontecendo em alguma parte do globo. Nenhum líder e nenhum país é impecável. E, no entanto, os observadores do governo comparativo e dos direitos humanos são capazes de identificar claramente os momentos em que o respeito pelos direitos e liberdades dos seres humanos começa a vacilar e diminuir. Estamos agora em um desses tempos. As manchetes de notícias de todo o mundo nos dão um fluxo contínuo de presságios sombrios”.

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